sexta-feira, 27 de abril de 2018

Lido: Infiltrado

Escrever ficção na segunda pessoa é um exercício delicado. Ao contrário da primeira pessoa, que transmite a ideia de que o acontecido é experimentado em primeira mão pelo narrador (ou pelo menos ele pretende que assim se pense), e abre possibilidades narrativas interessantes, ou da terceira, mais comum, em que a ideia é algo como "terá acontecido a alguém, mas entre mim, narrador, e esse alguém há alguma distância", a escrita na segunda pessoa implica que aquele a quem acontecem os casos descritos é o leitor. E isso, se por vezes faz pleno sentido como por exemplo na história de Geoffrey Landis de que falei aqui, de outras mais parece puro artifício sem grande razão de ser.

Neste Infiltrado, de Roberto de Sousa Causo, estamos em grande medida, parece-me, perante a segunda situação. E aviso desde já que para explicar porquê vou ter de dar SPOILERS. Começa agora.

A história contada é a de um agente alienígena infiltrado na sociedade terrestre, em missão de recolha de informações preliminar a uma invasão. Está sob plena perseguição, muito próximo da morte, e procura não só fugir aos perseguidores mas chegar a tempo a um aparelho revitalizador que o possa salvar. Infelizmente para ele, alguém se antecipou e o aparelho está vazio. Resta uma segunda opção: um portal de teletransporte oculto noutra divisão, capaz de o fazer sair rapidamente da Terra, mas o problema é que o seu corpo está em plena falência. Conseguirá?

É um conto tenso, cheio de ação do princípio ao fim, com bom ritmo e um bom equilíbrio entre essa ação e a necessidade de transmitir ao leitor a informação necessária para o compreender. Por outras palavras, sem infodumps. A opção pela segunda pessoa, parece-me, é uma tentativa de fazer o leitor sentir mais intensamente o perigo em que o ET se encontra... só que isso é um contrassenso no contexto de um conto sem espaço para se compreender as motivações do protagonista (tem página e meia), no qual a generalidade dos leitores torce naturalmente pela "equipa" adversária.

Ou seja, não creio que essa opção faça grande sentido neste conto. É uma experiência interessante, sim, mas o resultado da experiência não é muito bom: o conto ficaria melhor quer na primeira pessoa, quer na terceira. Mas mesmo assim, está longe de ser um mau conto. Nem é apenas razoável: é razoavelmente bom, dos pontos altos (mas não o mais alto) desta antologia.

Contos anteriores deste livro:

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