terça-feira, 23 de maio de 2017

Lido: A Morte do Lidador

Ainda há dias, a propósito de A Cidade da Ciência, eu criticava aqui na Lâmpada aquela prosa que procura ressumar heroísmo a cada linha, chamando-lhe, e não pela primeira vez, "tonitruante". E eis que me aparece à frente Alexandre Herculano, um nome cimeiro da literatura portuguesa do século XIX, e o seu conto A Morte do Lidador que, na introdução que o antecede nesta publicação, é apelidado não de tonitruante, mas de estrepitoso, o que vai basicamente dar no mesmo.

Trata-se de uma ficção histórica, um conto de cavalaria ambientado na época da Reconquista, e relata um par de batalhas entre as tropas portuguesas, lideradas pelo tal Lidador, um colosso de oitenta anos, aquartelado na praça de Beja, e a mourama que ainda chama seu ao Algarve e a partes do Baixo Alentejo. Gonçalo Mendes da Maia, verdadeiro nome do Lidador, é uma personagem histórica, e também históricos são os sucedidos que servem de base à ficção de Herculano, o que não surpreende dado que este era também historiador. O texto, porém, dificilmente será fiel à realidade histórica. Apesar da qualidade no manejo da língua portuguesa, o tom patrioteiro de exaltação do herói militar é tão ridículo em Herculano como em qualquer outro escritor, e certamente afasta o texto de qualquer aspiração a rigor. No meio de batalhas intensas, à espadeirada quando não é corpo a corpo, não se para de combater para ladainhar discursos plenos de patriotismo e lealdade, só para dar um exemplo gritante. Licença poética? Fruta da época? Provavelmente, provavelmente. Afinal, o mesmíssimo Herculano que escreveu isto foi amplamente acusado de falta de patriotismo por pôr em causa alguns mitos muito correntes (e ainda hoje) sobre certos episódios da Reconquista portuguesa.

De modo que me sinto ambivalente com este conto. Acho-o ridículo, sim, mas até compreendo o que pode ter levado à sua criação. Os homens e o que escrevem são frutos da época em que vivem e coisas que hoje só se encontram, felizmente, na extrema direita nacionaleira, há duzentos anos eram quase questão de sobrevivência. E quem conseguir ver para lá do tom estrepitoso descobre que o conto até está bem concebido e escrito com qualidade. Eu até consigo, com certo esforço, mas a verdade é que as trombetas que soam a cada página me fazem doer a cabeça. Portanto não, não gostei.

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