terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Lido: Caim

Já se escreveram rios de tinta, virtual e real, sobre Caim, o último romance de José Saramago, que, como sempre aconteceu quando o nosso nobel tocou a religião, gerou apreciável polémica. Para isso, teria bastado a humanização das figuras bíblicas, como se verificou com outro livro muito atacado por setores ligados à igreja católica, O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Teria bastado que reconhecesse aos homens dos mitos cristãos a soma de defeitos, virtudes, acertos e falhas que cabem a qualquer ser humano. Mas em Caim Saramago vai mais longe e deita o seu olhar implacavelmente crítico de todas as injustiças e crueldades sobre a figura divina propriamente dita... que não sai nada bem no retrato.

O enredo do romance descreve-se rapidamente. O protagonista é Caim, filho primogénito de Adão e Eva e o primeiro homicida da história tal como esta vem descrita nas mitologias abraamicas. Começa o romance em pleno Paraíso, depressa passa ao crime de Caim, que assassina o irmão, Abel, e por isso é marcado por deus (em minúscula, sempre, ao longo de todo o romance), e segue-se depois uma longa deambulação por diversos lugares e tempos, nos quais é Caim testemunha de variados episódios bíblicos.

Um detalhe relevante: nunca se chega a sair do Antigo Testamento, e o deus com que Caim contacta, e de que Saramago assim fala, é o deus colérico, vingativo, cruel e de uma forma geral desumano dessa coleção de textos bíblicos. Caim odeia-o, e a cada episódio de crueldade a que assiste mais se aprofunda esse ódio. Perante os crimes de deus, argumenta, o seu (de que, de resto, rapidamente se arrepende) é uma insignificância. Assim sendo, como pode deus arrogar-se a ter a legitimidade de o condenar ou absolver?

(Um parêntesis: se pusermos de parte por um momento que estamos a falar de deus, não seria uma ideia muito semelhante aplicável aos estados?)

Esta é a tese do livro, e é uma tese que, enquanto ateu, não partilho. Para um ateu, todos e quaisquer deuses não passam de invenções humanas, e portanto são tão cruéis como quem os criou queira. Deus não é mais culpado das qualidades e defeitos que lhe inculcam do que qualquer outra personagem de ficção. O deus do Antigo Testamento, como todos os seus pares, serviu (e continua a servir) um propósito, não tem existência autónoma nem vontades próprias. A sua crueldade fala-nos da sociedade que o criou e daquelas que o perpetuaram, não de si próprio. Esta seria, a meu ver, a abordagem realmente ateia à mitologia abraamica, mas não é a que Saramago aqui usa. Saramago, aqui, é cristão. Iconoclasta, talvez, mas cristão.

E é isto o que os que o odeiam por causa deste livro não perdoam.

Quanto ao livro propriamente dito, não é das melhores obras de Saramago. As alegorias têm sempre qualquer coisa de tese, mas esta pode estar mais ou menos bem embrulhada numa história, pode estar mais ou menos bem construída. As melhores põem a tese em segundo plano, visível mas não intrusiva. Saramago sabia disso, tanto assim que em nenhuma das suas alegorias dispensa a construção de uma história propriamente dita... mas aqui quase o faz. Talvez por estar a sentir o tempo a esgotar-se-lhe, talvez por estar já diminuído (afinal de contas, publicou o livro aos 86 anos, um ano antes de morrer), o facto é que o livro é mais uma coleção de episódios dispersos e debilmente interligados, destinados a vincar uma ideia, do que uma história propriamente dita. As deambulações de Caim, que não só é dotado de uma vida extraordinariamente longa, como salta no tempo de uma forma quase ciencioficcional, são reminiscentes das do grupo que protagoniza A Jangada de Pedra mas enquanto neste livro o motor narrativo e principal personagem é a própria Península Ibérica à deriva no Atlântico, em Caim não existe nada de semelhante que lhe forneça estrutura, e até a voz narrativa está algo distante do melhor a que Saramago habituou os seus leitores.

Por outro lado, é um livro de Saramago e isso diz muito. A qualidade literária está lá, quase intacta, o característico estilo, aquela forma tão sua de tornar o texto ao mesmo tempo simples e complexo também, o que é notável para a idade do autor. Até há algum humor e certamente há bastante amor no meio de toda a raiva. Mesmo não sendo do melhor que Saramago nos deu, Caim está muito longe de ser um mau livro.

Mais um livro comprado.

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