segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Lido: Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa

Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (bibliografia), antologia organizada por Luís Filipe Silva e por Luís Corte Real, é um livro de história alternativa, mesmo sem que nenhum dos contos que o compõe o seja.

É um livro de história alternativa porque reinventa a história da ficção popular em Portugal. Esta, que existiu mesmo (e estão aí os textos do Repórter X, entre outros, que não me deixam mentir), nada tem a ver com as histórias que aqui se reúnem, e nunca foi, nem de perto, nem de longe, tão pujante e influente como se descreve nas páginas deste livro. Aqui encontra-se, não a ficção popular portuguesa tal qual foi, mas a ficção popular tal qual poderia (deveria?) ter sido, se as coisas se tivessem passado de forma diferente e o "pulp" português acompanhasse o americano em complexidade e dinamismo.

E é um bom livro de história alternativa. Um livro de HA sem um ponto de divergência claro (embora seja evidente que ele teria ocorrido algures nos anos 30 do século XX) mas que a partir daí desenvolve uma ucronia literária quase sempre credível, para o que as histórias propriamente ditas são muito ajudadas por magníficas introduções pseudofactuais de Luís Filipe Silva (que constituem contos por direito próprio) e por um design invulgarmente cuidado, que apresenta os contos como fac-símiles de publicações da época. Ou como fac-símiles de obras nunca editadas, em manuscritos batidos à máquina e cortados pela censura.

A ilusão só é estragada por duas coisas. Uma é detalhe que provavelmente passará despercebido a muitos leitores. A outra não.

Esta outra é a última história, uma novela de João Barreiros que destoa fortemente do conjunto formado pelas demais ficções. Luís Filipe Silva bem tenta integrá-la, criando para ela uma complexa história que explique a sua modernidade, mas com um sucesso muito parcial. Quem conheça um mínimo de ficção científica portuguesa não só sabe quem é João Barreiros como facilmente lhe reconhece estilo e temas e tem plena consciência de que não se trata de autor que tenha andado envolvido em pulps, por mais tardios que estes possam ser. Como consequência, Mais do Mesmo! pode ser uma das melhores histórias deste livro, mas, paradoxalmente, ele ficaria melhor sem ela.

Quanto ao detalhe, é ortográfico. É provável que muitos leitores, convencidos de que a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 era coisa mais ou menos eterna e imutável, nem se deem conta disso, mas a ortografia usada ao longo deste livro não bate certo com a ilusão de estarmos perante fac-símiles de histórias antigas. É que em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal houve alterações ortográficas que tiveram algum impacto sobre a forma de escrever as palavras. Quem pegar em publicações anteriores, irá encontrar, por exemplo, acentos graves em advérbios, que a partir dos anos 70 deixaram de se usar. Coisas como "amàvelmente", por exemplo. E, em verdadeiros fac-símiles esses acentos apareceriam. Ora, aqui não se encontra nem um. Pior: há "fac-símiles" anteriores ao acordo ortográfico de 1945, que Portugal aplicou (o Brasil não) e que teve também o seu impacto. Ou seja: entre histórias fac-similadas de originais anteriores aos anos 40, outras (a maioria), fac-similadas de originais publicados entre os anos 40 e os 70 e a última, que seria fac-símile de uma edição dos anos 90, deveriam encontrar-se aqui três ortografias diferentes. Mas só se encontra uma, aquela que o AO90 veio substituir.

Dir-me-ão, oh, mas o livro é história alternativa, portanto nenhuma dessas alterações ortográficas aconteceu mesmo na linha temporal alternativa a que diz respeito, e a nossa ortografia anterior ao AO90 foi aí instituída logo nos anos 20, ou assim. Bem, é uma possibilidade. Mas a verdade é que o design, a paginação, os tipos utilizados nos "fac-símiles" remetem todos para épocas (e publicações) bem precisas na nossa linha temporal, e teria sido enriquecedor, teria beneficiado a ilusão que o livro procura criar, se tivesse havido o mesmo cuidado com a ortografia que houve com o design.

À parte estes dois reparos, tenho de dizer que a edição está excelente. Se há livros que são menos que as partes que os compõem, este é muito mais. É quase uma edição de luxo (e não deve ter saído barata à editora), cheia de pormenores deliciosos, na qual até se replicam as irregularidades características das velhas máquinas de escrever ou as falhas que por vezes aconteciam com a impressão com tipos metálicos nas tipografias. Mais: num momento em que a edição tradicional, em papel, sofre o desgaste da revolução digital, edições deste género podem ser um caminho possível de resistência.

E quanto aos contos? Que achei eu dos contos? Não gostei muito deles, a verdade é essa. Mas que importa, se cumprem quase sempre muito bem o seu papel? Seja como for, aqui está o que achei dos contos.
Este livro foi comprado.

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