domingo, 7 de janeiro de 2018

Revolucionário

Ao rebentar o ano de 2017, tomei uma espécie de resolução de ano novo. Já algum tempo que andava com o bichinho da escrita a formigar, com as histórias às voltas na cabeça a querer sair e outras histórias semiescritas a suplicar por uma conclusão, e disse aos meus botões (e, se bem me lembro, ao twitter) algo como "macacos me mordam se este ano não acabo pelo menos uma das coisas que tenho incompletas".

A vida, claro, tinha feito outros planos: primeiro uma inundação de trabalho, depois uma doença não identificada (na altura; entretanto já foi) mas muito chata e a seguir um braço partido na família e outra inundação de trabalho, reduziram a quase zero a disponibilidade, mental e de tempo, para escrever fosse o que fosse.

Mas recusei-me a continuar mais um ano a seco e, quando o Sérgio Gaut vel Hartmann, um editor argentino que tem intensa atividade como antologista de ficções curtas e ultracurtas, me surgiu no Facebook com uma proposta nova para contos até 300 palavras, tive imediatamente uma ideia e, algum tempo mais tarde, passei-a a escrito, pensando que nada como ficções ultracurtas para descongelar, desenferrujar os músculos ficcionistas depois de terem passado demasiado tempo adormecidos. Mais tarde ainda, tive outra ideia e também a escrevi. Ao enviar os contos, prometi aos que me seguem nas redes sociais que o(s) que não fosse(m) aceite(s) seria(m) publicado(s) aqui na Lâmpada.

Ora, a proposta do Sérgio estava limitada a um conto por autor, portanto eu sabia de antemão que um desses dois contos seria recusado. Originalmente, estava previsto ficar a saber a 31 de dezembro se algum conto meu (e qual) iria entrar no livro, mas essa data foi postergada para o fim de janeiro. Mas entretanto já sei qual não irá ser aceite. Portanto improvisei uma ilustraçãozinha, a fingir de capa, e aqui está como prometido. É ficção científica razoavelmente hard e, dos dois contos, é aquele de que mais gosto, embora também concorde que é aquele que menos respeita a proposta da antologia. Espero que gostem.

Revolucionário

Quando lhe trocaram a mão esquerda por um implante multifuncional não se importou muito. O trabalho exigia-o. E, bem vistas as coisas, o aumento de versatilidade compensava a perda de sensibilidade.
Quando lhe queimaram ambos os olhos com hélio líquido e os substituíram por lentes de largo espectro aborreceu-se um pouco. Gostava de se rever nos seus olhos castanhos e, apesar de passar a ver mais e melhor, nunca evitava algum incómodo ao ver-se ao espelho, como se não fosse bem ele quem ali estava.
Quando um dia acordou sem ambas as pernas e se viu transportado para o centro de reformulação para lhe implantarem dos novos fleximembros de cinco articulações teve um momento de verdadeiro mau humor. Mas o contrato de escravatura temporária era claro: durante cinco anos era propriedade integral da empresa; podiam fazer com ele o que quisessem. Por isso, fez um esforço para se resignar.
Quando o mindinho e o anelar da mão direita lhe foram cortados a sangue-frio e substituídos por interfaces de média velocidade teria encolhido os ombros se a ligação não tivesse ficado mal feita, causando-lhe um certo desequilíbrio neuronal.
Quando o esfolaram meticulosamente, recobrindo-o depois com uma sintetiderme multifuncional, ficou realmente irritado. Mas a sintetiderme era fotossintética e por isso negra, como a pele velha, portanto tentou convencer-se de que a mudança nem era assim tão grande.
Mas depois ligaram-lhe o mindinho direito ao mainframe do asteroide e percebeu, quando um curto-circuito fez com que recebesse alguns pacotes que não devia ter recebido, que se preparavam para lhe substituir a consciência por uma dócil IA de baixo espectro.
Foi um erro. Sério.
Há anos que ninguém se atreve a pousar no asteroide. Diz-se que ele ainda por lá anda, revolucionário, sozinho entre os cadáveres.

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