sexta-feira, 4 de março de 2016

Lido: A Grande Sombra

A Grande Sombra (bibliografia), mais uma novela fantástica de Mário de Sá-Carneiro, regressa a algumas das suas obsessões. Tem aspetos bastante interessantes, mas eles são subjugados por algumas características que fazem com que este seja, na minha opinião, o pior dos textos de Sá-Carneiro lidos até este ponto, excetuando apenas algumas das curtíssimas experiências iniciais.

A história é mais uma vez contada de forma diarística, pela pena de um homem que descreve o que de mais importante vai acontecendo na sua vida e, longamente, muito longamente, o que vai na sua mente. Esse é um dos problemas desta história: durante longuíssimas páginas ela, a história, não existe; há apenas as ruminações plenas de umbigo de um homem quase absolutamente centrado em si mesmo, presunçoso, e repleto de ennui (tem mesmo de ser assim em francês) burguês. Só começa a haver história propriamente dita quando ele comete um homicídio... e isso acontece à página 27 de um texto que, nesta edição, ocupa 51 páginas. Até aí...

Bem, até aí vão acontecendo algumas coisas, é certo. Mas são coisas desconexas, rápidas descrições de uma ou outra cena cujo único interesse reside em ajudar a caracterizar o estado de espírito (muito pouco são, como facilmente se imagina) do protagonista e servir de pretexto para uma elaboração e poetização da prosa que sobrepõe, de uma forma que chega a ser agressiva, a frase de efeito poético, tantas vezes pouco ou nada densa em substância, a alguma espécie de enredo. E esse é outro problema, e bastante grave. De facto, aqui Sá-Carneiro comete quase todos os pecados que caem dentro da definição anglo-saxónica de purple prose, um domínio total, hiperadjetivado, floreadíssimo, da forma sobre o conteúdo. E ainda por cima de uma forma francamente desagradável para a minha sensibilidade literária.

De resto, voltamos às obsessões mórbidas, à loucura e a uma certa fluidez de sexualidade, ou pelo menos de atração, que já estavam patentes em muitas (a morbidez, a loucura) ou em algumas (as sugestões de homossexualidade) das histórias anteriores. Após o assassínio de uma mulher que o atraíra, durante um ato sexual, o protagonista e narrador surpreende-se por se achar livre de suspeitas em vez de preso e condenado pelo crime, e isso revigora-o. Mas mais tarde conhece um homem misterioso e sente-se misteriosamente atraído por ele, passando a acompanhá-lo para todo o lado até chegar à conclusão de que o homem que o atrai e a mulher que matara estão interligados (ou até que de certa forma se fundem) de uma forma enigmática. Fantástica.

Essa é das coisas mais interessantes nesta novela, mas não a mais interessante. Creio que essa taça terá de ser entregue a um recurso estilístico de que Sá-Carneiro aqui se serve de uma forma surpreendente, embora não tão eficaz como poderia ser sem o excesso de poetização do texto. É que muitos são os sentimentos, os atos, os pensamentos, que vêm associados a cores, o que resulta num texto muito sinestético e cria imagens no mínimo intrigantes e ocasionalmente bastante fortes.

Em todo o caso, esses pontos de interesse não chegam. Os defeitos desta novela são demasiado pesados. Não consigo sequer achá-la razoável.

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