sábado, 13 de fevereiro de 2016

Lido: A Confissão de Lúcio

A Confissão de Lúcio (bibliografia), porventura a mais conhecida obra em prosa de Mário de Sá-Carneiro, é uma longa novela todorovianamente fantástica, que navega também pelos territórios do policial, muito à semelhança do que Poe faz em vários dos seus contos. Lúcio, o protagonista/narrador, é um criminoso condenado por assassínio, e o texto é a sua confissão, embora não de uma culpa mas de uma inocência.

Sendo depoimento, e estando tingido pelas cores do sobrenatural, o texto obedece à definição clássica do fantástico proposta por Todorov, pois pretende deixar no ar a dúvida sobre se o que é narrado sai mesmo da experiência quotidiana; o narrador garante a veracidade do que escreve, mas ele mesmo reconhece logo a abrir o texto que decerto não irão acreditar.

E depois disso lança-se numa longa explanação de vários anos da sua vida de literato ocioso, entre Paris, cidade-fétiche dos intelectuais do tempo, e Lisboa. O início, em que Sá-Carneiro descreve o ambiente dos círculos cultos e endinheirados da capital francesa, chega a ser divertido, com um friso curioso de personagens caricaturais, presunçosas, fúteis. Somos apresentados, entre outros, a um tipicíssimo e pedantíssimo hipster; embora, no momento em que Mário de Sá-Carneiro escreve esta história, essa designação esteja ainda cerca de um século no futuro, o conjunto de personalidades e atitudes que ela designa parece ser tão antigo como a presunção. Somos apresentados também a uma dançarina/coreógrafa underground, cujo espetáculo (festa?) é uma mistura de dança com bacanal lésbico. E somos apresentados a Ricardo de Loureiro, poeta português por quem o jovem Lúcio ganha imediata amizade.

Este é diferente dos demais. Tão terra-a-terra quanto os outros são extravagantes, partilha com Lúcio ideias e pontos de vista e os dois jovens unem-se na rejeição de todo aquele intelectualismo oco, passando a conviver mais um com o outro do que com todos os demais. E durante algum tempo, a novela não mostra grande vontade de sair deste mundanismo brando.

A coisa muda de figura quando Ricardo de Loureiro volta para Portugal e casa com uma tal Marta. E esta não é uma mulher como as outras... pelo menos segundo afirma o homem que se confessa. Informados logo a abrir de que o casamento como que feminiliza Ricardo, e de que este partilha com Marta uma surpreendente identidade de pontos de vista e atitudes, vamos assistindo a cenas mais ou menos fantasmagóricas ao mesmo tempo que assistimos ao fascínio crescente de Lúcio por Marta, que desemboca em adultério e sexo. Mas ao mesmo tempo, alusões e atitudes cada vez mais explícitas vão levando o leitor a suspeitar de que Marta pouco mais é do que uma imagem, um truque literário, que corporiza a atração homossexual entre Lúcio e Ricardo. No final, muita dessa suspeita é confirmada, quando, pouco antes do desenlace do drama, este explica àquele que encontrou uma forma de desdobrar a alma, criando assim a mulher. Para quê? Para o poder amar.

A Confissão de Lúcio é uma novela muito curiosa, muito bem elaborada, muito bem escrita e muitíssimo ambígua, na qual as obsessões de Sá-Carneiro (como o suicídio, por exemplo) estão bem presentes mas se revestem de roupagens algo diferentes das de obras anteriores. Também nisso, na capacidade de variar dentro de um tema obsessivo, afastando assim o aborrecimento que a repetição simples causaria, esta história está bem conseguida.

Uma novela francamente boa.

Contos anteriores deste livro:

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