sábado, 30 de janeiro de 2016

Abandonado: Espíritos das Luzes

Espíritos das Luzes (bibliografia) é uma bizarra resma de papel, constituída na sua maioria por fragmentos dos escritos de uma série de personagens setecentistas, com Bocage à cabeça, que Octávio dos Santos tenta colar numa historieta que, com uma capa vagamente relacionada com a ficção científica, não passa de exaltação patrioteira das superiores virtudes da lusitanidade.

Ora bem, eu sou um tipo teimoso e curioso. Tenho, desde sempre, uma compulsão pelo virar de página, uma curiosidade por aquilo que espera do outro lado da folha que normalmente só se deixa saciar quando ela é realmente virada e o conteúdo é lido... para ser substituída por curiosidade igual sobre a página seguinte. Mesmo quando um livro é chato, mesmo quando é quase insuportavelmente maçudo, essa curiosidade existe sempre. E o facto é que já tive ótimas experiências por causa dela; sem ela teria deixado a meio o Memorial do Convento, por exemplo, o primeiro Saramago que li e que só me começou a prender lá pela página 100. Essas recompensas que a minha teimosia leitora me proporcionou só a reforçaram, mesmo que na maioria das vezes as primeiras impressões acabem por se revelar acertadas. E portanto faço sempre, mas sempre, um esforço para chegar ao fim dos livros que enceto. Foi assim que li de fio a pavio livros muito, muito maus e é por isso que em quatro décadas de leitor se contam pelos dedos de uma só mão os que deixei a meio por iniciativa própria.

Entra em cena Espíritos das Luzes.

A ideia até é boa (e o exercício literário muito válido), ainda que seja claramente demasiado ambiciosa para a grande maioria dos autores que por aí andam e haja problemas éticos óbvios em usar-se o nome de quem faz a compilação como se fosse autor único de um livro constituído na sua maior parte por textos de terceiros, que ainda por cima já por cá não andam para protestar. Quem pegou nas obras de Jane Austen e lhes acrescentou subtramas fantásticas com zombies, lobisomens ou outras criaturas mais ou menos mitológicas teve pelo menos a decência básica de se colocar como coautor (o que de facto é), não como autor único (o que estaria muito longe de ser) do resultado. Mas a ética, ou a falta dela, fica com quem com ela se revela. A obra é o que é independentemente desse tipo de detalhe.

A obra depende sobretudo da forma como o autor (ou, neste caso, compilador-autor) põe em prática a ideia. E esta, como digo acima, é demasiado ambiciosa para a generalidade dos autores. Não é qualquer um que é capaz de pegar numa quantidade de textos díspares e de construir com eles um todo com alguma coerência. E não, não estou aqui a falar de se ter de ser bom escritor, porque as qualidades necessárias para este tipo de corta-e-cola são umas e as que são indispensáveis para se criar obra original com qualidade são outras, ainda que convenha escrever-se bem quando os textos escolhidos são de autores que escrevem bem para que o contraste não seja demasiado evidente. Duvido muitíssimo que Saramago, Lobo Antunes ou tantos outros autores de primeira ou segunda linha tivessem capacidade, já para não falar de vontade, para pôr mãos a obras destas. Ou seja, caso a coisa fosse bem sucedida e as questões relativas à autoria tivessem solução condigna seria caso de se tirar o chapéu.

Mas a porca, raios a partam, torce o rabo. E torce, e retorce e volta a retorcer.

Começa a torcê-lo com o contraste entre a prosa do Santos e a prosa setecentista. Não só a daquele é claramente mais moderna, o que é naturalíssimo mas não contribui em nada para a coesão do resultado, como é de uma qualidade muitíssimo inferior à da maior parte dos outros autores, em particular da de Bocage, que ainda por cima tem aqui honras de personagem principal.

Continua a torcê-lo com o ambiente pateta que o Santos arranjou para servir de esqueleto à história. Uma coisa destrambelhada sobre o "Planeta Portugal," parte do "Sistema Solar Europa," cheio de outros planetas entre os quais circulam "passarolas interestelares." Portugal, o planeta, tem pelos vistos uma geografia curiosa, subdividindo-se a parte emersa nos continentes Alentejo, Minho, Algarve, Beiras, Açores e por aí fora, separados por oceanos com os imaginativos nomes de Tejo, Douro, Sado, etc. Tudo num gigantismo de sonho de anão complexado. Só para exemplificar, a capital do planeta, chamada — adivinharam — Lisboa, inclui uma Praça do Comércio com "49 quilómetros quadrados de superfície." Uma praça maior que a ilha do Porto Santo. Pois.

Torce-o mais um pouco com os excertos. Como são quase sempre postos na boca de quem os escreveu, como falas, o resultado é um texto descritivo que parece servir de pouco mais do que de ligação ao fragmento seguinte, sem que essa ligação pareça (pelo menos de início) ter por trás algum verdadeiro enredo que a dirija, intercalado por discursos insuportavelmente pomposos. Um exemplo, retirado da página 29: "A escandalosa relaxação em que está vivendo uma grande parte dos eclesiásticos, trajando contra a modéstia, frequentando as casas de jogo, as mulheres prostitutas, e usando chinelas com bicos à jacobina, e fitas à republicana!" Outro, da página 33: "Declaro os sobreditos regulares na referida forma corrompidos, deploravelmente alienados do seu santo instituto, e manifestamente indispostos com tantos, tão abomináveis, tão inveterados e tão incorrigíveis vícios" e por aí fora, numa série de soporíferos arrazoados, de que as "falas" de Bocage se destacam não por serem menos discursivas, mas porque, graças à bem conhecida irreverência do autor, são menos chamativas de bocejos.

Sim, é penoso desbravar este livro.

Mas eu, como já disse, sou um leitor teimoso. Cheguei ao fim de livros tão penosos como este. Qual é, então, a diferença?

A diferença é a incoerência.

Lembram-se da descrição do ambiente? Lembram-se de estarmos num planeta Portugal, parte de um sistema solar Europa, subdividido em continentes com os nomes das províncias? Lê-se isso nas páginas 13 e 14. Pois agora venham comigo até à página 36, onde se pode ler isto, de novo uma arenga de uma das personagens:

"Esta nação [...] tornou os súbditos por igual dependentes do trono e possuidores dos mesmos privilégios. Pequenina, portanto, mas autónoma, e como se sozinha atentasse à segurança e à grandeza da Europa, enquanto esta se dilacerava nas suas divisões, os portugueses conquistavam as costas de África; descobriam os mares e os desertos daquela região inculta; abriam a navegação até às Índias Orientais; ali faziam potentes diversões ao ímpeto dos turcos; talvez fornecendo as luzes, de onde outros se aproveitaram com maior sucesso; acrescentavam a quarta parte à Terra [...]"

E foi aqui que eu fechei definitivamente o livro. A chatice ainda aguento. Alguma estupidez também. Mas quando esta é em tal excesso que sinto a minha inteligência insultada, santa paciência. Há coisas melhores com que gastar a vida.

Estávamos no planeta Portugal, de repente estamos numa "nação". Pequenina, ainda por cima. Estávamos no sistema solar Europa, de repente estamos em outra Europa que se "dilacera nas suas divisões," como se os planetas andassem sempre a fragmentar-se e a reconstruir-se. O planeta (ou será a nação?) Portugal, às tantas, "conquista as costas de África," supõe-se que outro sistema solar, algures. Pelos vistos um sistema solar que se subdivide, não em planetas, mas em mares e desertos. E, de caminho, dão um salto às Índias Orientais, que não se percebe o que é (outro planeta, outro sistema solar?) nem que raio de sentido faz a noção de oriente quando se está a falar em termos astronómicos. E até há uma Terra, vejam só. Não me perguntem é o que é uma Terra quando temos uma história(?) ambientada num planeta Portugal.

Patético.

E no meio disto tudo, Octávio dos Santos é tão mau no que tenta fazer que amontoa citações sem sequer se dar conta de estar também a amontoar incoerências.

Este livro, meus caros, é puro lixo. Pobres árvores que foram abatidas para se transformarem nisto.

E eu ainda o comprei com o meu rico dinheirinho. Não me apanham noutra.

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