terça-feira, 12 de agosto de 2014

Lido: O Marinho

O Marinho é um conto de George Sand, a pingar ironia por cada entrelinha, que conta uma história de amor. Ou melhor, que conta a história de como a paixão de um homem banal com mais ambição que posses desembocou na conquista da apaixonada que durante muito tempo o desdenhara. E tudo graças a um acidente. É divertido, francamente divertido, mesmo não sendo este tipo de conto da minha predileção pessoal, longe disso. Por isso, talvez, não me tenha enchido as medidas. Mas divertiu-me, isso sem dúvida. E gostei da crítica, só implícita para quem nada entenda do que lê (de contrário encontrá-la-ão bem explícita) ao viver de aparências que tão endémico é em certos meios e em certas formas de ver o mundo. Ainda hoje, oh sim.

Outra coisa que achei curiosa, mas esta por viés de ofício, foi a tradução de Amadeu Lopes Sabino, por ultrapassar o âmbito típico de uma tradução até mais propriamente se lhe dever chamar uma versão. Talvez. É que Sabino transplanta o conto de Sand para a zona de Lisboa e altera-lhe os nomes às personagens. Mas à parte isso, numa comparação rápida que fiz com o original (em domínio público — é conto já com quase dois séculos de existência), a tradução parece-me ser bastante fiel. Descontando as mudanças na geografia e nos nomes, portanto, o conto está francamente bem traduzido. Traduzido, não reescrito. Será assim versão? Tradução?

A decisão de alterar os nomes está explicada em nota de tradutor e eu, embora não possa dizer-me fã desta abordagem, compreendo-a. E rio-me à gargalhada com ela.

É que não há muito tempo me vi sob fogo de um pessoal pouco ou nada instruído nestas coisas das traduções e das literaturas por me ter atrevido, imaginem, a traduzir para português umas quantas alcunhas, vejam só a desfaçatez do bicho traduzideiro! Se fosse num western ou num livro de gangsters, em que décadas de traduções mais ou menos toscas em filmes e livros de BD baratos estabeleceram um hábito de manutenção das alcunhas no original, ainda vá. Mas não. Nem na Terra a história se passava. E de repente eis que me aparece à frente o Sabino a mandar às urtigas as regrinhas que os incultos semiaprendem nas faculdades (quando sequer por aí passam) e a fazer o que acha que o conto pede para melhor ser lido em Portugal por portugueses. Granda Sabino!, pensei eu cá com os meus botões, enquanto gargalhava.

A moral da história é: não há regras invioláveis, daquelas a preto e branco, indiscutíveis. Há abordagens e interpretações e, se souber o que está a fazer e porquê, o tradutor não só pode mas deve violar toda e qualquer regrinha que lhe seja posta à frente, se achar necessário. Cabe ao leitor compreender que assim é e desfrutar do texto, de preferência aprendendo qualquer coisa no processo. Ou amuar e espingardar nos paroxismos de histeria que tão tristemente habituais são, e sem aprender nada porque, como é óbvio, já sabe tudo de nascença. Como no velhinho programa de TV, você decide.

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