quinta-feira, 14 de agosto de 2014

And the winner is...

... outro gajo qualquer.

Os prémios são coisas mágicas. Funcionam assim mais ou menos como as lagoas de decantação das estações de tratamento de águas residuais, e refiro-me às primeiras, sempre cobertas por aquela camada de "limo", aparentemente sólida e inevitavelmente fétida, não às últimas, onde a água já está razoavelmente limpa. No caso dos prémios, o limo, aquilo que magicamente vem sempre ao de cima, é composto por mesquinhez e pelos mais baixos instintos movidos a inveja e a coisas piores, mesmo quando por vezes se procure maquilhar essas coisas de algo diferente.

E isso acontece em todos, seja qual for o seu prestígio, relevância ou modo de funcionamento. Porque quem se destaca numa área qualquer é inevitavelmente acompanhado por uma coorte de detratores e porque uma parte mais ou menos significativa (ela varia) desses detratores passou pela rua da honestidade a galope, não fosse apanhar alguma doença. Todos os que temos idade para isso nos lembramos das insinuações, quando Saramago venceu o Nobel, de que o único motivo para tal coisa foi a Academia Sueca ser um bando de comunas enrustidos que de literatura nada sabem. E outras, bem piores, mesmo que nessa época ainda nem houvesse redes sociais e o lodo estivesse geralmente coberto por uma fina película sanitária representada pela imprensa que então só muito raramente descia ao nível costumeiro no nosso atual Correio da Manhã.

Ora, se isso acontece com pináculos da cultura como Saramago e o Nobel, não deixa de acontecer com coisas bem menos significativas. Bem pelo contrário. E não é fenómeno só nosso, atenção: é universal, apesar de uns povos terem barreiras culturais mais fortes contra esse tipo de coisa do que outros. As do nosso, infelizmente, quase não existem.

Quem já anda nisto há alguns anos já sabe que insinuações a camada fétida vai lançar. Se o prémio é entregue por votação popular, é concurso de popularidade sem nada a ver com qualidade, há caixinha, campanhas subterrâneas, grupos de amigos a votar uns nos outros, compra de votos, etc., etc. Se o prémio é determinado por júri, o júri é incompetente, o júri é parcial, o júri está comprado, devia ser outro júri, quem foi que deu autoridade àqueles azelhas para escolher quem não me agrada, e por aí fora.

É evidente que nem tudo são só insinuações. Todas estas coisas acontecem mesmo, em maior ou menor grau. Ou, mais especificamente, em maior grau do que a organização dos prémios afirma, em menor grau do que a camada fétida insinua. E mesmo se não acontecessem, nenhum prémio seria perfeito porque todos dependem até certo ponto das múltiplas falibilidades humanas, especialmente quando pretendem premiar algo tão subjetivo como as realizações artísticas. E porque todas as formas de decisão dos vencedores são em si mesmas imperfeitas.

Algumas, no entanto, são mais imperfeitas do que outras.

Vem isto a propósito de eu ter recebido uma nomeação para melhor tradutor nos prémios deste ano da European Science Fiction Society (ESFS). A ela, depois de ter sido informado via facebook por um dos vagos contactos que por lá tenho, reagi com, e cito, "Olha, giro. Parece que fui nomeado para um prémio," preparando-me desde logo para esquecer o assunto. O grau de entusiasmo foi precisamente o mesmo de encontrar um vídeo de golfinhos (para vocês seria um vídeo de gatinhos, suponho) algures na web: é giro, dá um calorzinho íntimo durante cinco minutos, e esquece-se de seguida.

Mas claro, a camada fétida não deixou.

Antes de receber a nomeação já conhecia estes prémios, mas de uma forma muito vaga. Sabia que existiam e que tinham a ver com as convenções europeias de FC que acontecem todos os anos, e pouco mais. Como não tenho grande interesse por convenções, acho-as em regra uma perda de tempo (exceto numa coisa: as feiras do livro), raramente vou às portuguesas e nunca fui a nenhuma internacional, foi coisa que desde sempre me passou ao lado. E como há vários anos que procuro manter-me bem longe da mesquinhez que impera no chamado "fandom" português de FC, tratando calmamente dos meus projetos e do meu trabalho e borrifando-me no resto, nem soube, até há dias, que estes mesmos prémios já no ano passado tinham dado barulho.

Não é só camada fétida, embora o seja em grande medida. Estes prémios são bastante mais opacos do que é norma por se constituírem basicamente numa operação de voluntarismo. A ESFS pretende juntar comunidades de produtores e consumidores que, por questões que têm sobretudo a ver com as línguas e com a ausência das afinidades culturais europeias que muitas vezes se proclamam mas na prática não existem, se ignoram quase por completo umas às outras. Salvo as eternas exceções que confirmam as regras (e que normalmente só surgem por interposto inglês), em Portugal não se publica FC espanhola, país onde não se publica FC francesa, onde quase não existe FC alemã, e por aí fora. Assim, as listas de possíveis premiados estão sempre repletas de completos desconhecidos em todo o lado menos no país de onde são oriundos e ocasionalmente nos seus arredores linguístico-culturais (os franceses são conhecidos dos belgas e vice-versa (isto dos "arredores" é fenómeno de via dupla), os alemães dos austríacos, coisas dessas... e nós, à exceção da Galiza, só temos arredores linguístico-culturais fora da Europa). Que depois, acho eu (mas se calhar engano-me... não percebi bem como a coisa se processa e, francamente, não estou interessado em perceber) são escolhidos por quem vai às convenções, onde vale a força das nacionalidades. As próprias nomeações, feitas por "delegados" nacionais cujo modelo de escolha também, confesso, não percebi, estão sujeitas a todos os problemas inerentes aos prémios de júri, desde o gosto pessoal de não sei quantas pessoas a fenómenos menos benignos. E tudo porque na verdade não existe a comunidade europeia que a ESFS procura criar ou incentivar com os prémios e as convenções. Eu até acho o esforço meritório. Mas isso não quer dizer que a tentativa tenha até agora sido bem sucedida. Não tem. E, a menos que haja uma enorme revolução na forma como a produção cultural europeia circula, revolução essa que vejo tudo menos próxima, não terá nunca.

Daí o semi-indiferente "olha, giro." A nomeação nasce de opções de não sei quantas pessoas, que até pode ser só uma, e será avaliada por um conjunto de outras pessoas, seja júri europeu, seja participantes na convenção, que na sua esmagadora maioria não me conhecem de lado nenhum. É giro que alguém ache que eu mereço o prémio e/ou que represento bem o meu país no âmbito das regras estabelecidas pela ESFS (ou na sua interpretação dessas regras, pelo menos), mas daí não passa. É uma (ou duas, ou três, sei lá eu) opinião entre muitas. É um mini-prémio de júri, o qual foi escolhido não sei como, no seio de um prémio mais vasto que não ganharei nunca porque fora de Portugal e do Brasil ninguém faz a mais pálida ideia de quem sou. Pura e simplesmente não tem relevância suficiente nem para os nomeados (ou até os vencedores) embandeirarem em arco nem para os ataques de histeria da camada fétida. É giro, ou seria se não fosse a mesquinhez e até a canalhice que traz ao de cima, e mais nada.

E todos os prémios são assim, embora a maioria não o seja tanto. Ao contrário deste, alguns têm implicações económicas, outros acarretam ainda um prestígio que pode beneficiar carreiras, embora a camada fétida esteja a fazer os possíveis por destruir o de todos, mas, quando são reduzidos ao âmago, todos eles são apenas uma opinião de um conjunto mais ou menos reduzido de pessoas e disso não passam. São um elogio público, tal como o é uma boa crítica ou a compra de livros ou de bilhetes para espetáculos. E só. Estão longe de ser o mais importante.

O mais importante, isso, é a obra. Esta fica e está aí, haja prémios ou não haja. A minha, nesta área, são já algumas dezenas de traduções. O resto é, como diria o Boris Vian, embora bem longe deste contexto, l'écume des jours.

Se a camada fétida se coibisse de empolar a relevância dos prémios seria melhor para todos.

Mas não tenho a mínima esperança de que isso aconteça algum dia. Afinal, para ela não há pior crime do que alguém ter alguma espécie de sucesso, mesmo quando este é mais ilusório que real.

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