quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Lido: O Planeta Vermelho

O Planeta Vermelho (bib.) é um romance de ficção científica de Russ Winterbotham sobre uma expedição a Marte, a primeira. O enredo básico é o mesmo de tantas outras histórias de FC: junta-se um conjunto de pessoas, encerra-se essas pessoas numa nave espacial durante meses e envia-se tudo a Marte, para exploração presencial do planeta. Em 1962, ano em que o livro foi publicado na língua original (a edição portuguesa, com esta capa incaracteristicamente discreta para um livro de FC, é do ano seguinte), nem se sonhava o desenvolvimento que a computação, e por conseguinte a robótica, iria ter nas décadas seguintes, e era quase impensável enviar para o espaço máquinas suficientemente sofisticadas para fazerem essa exploração e reconhecimento sozinhas. Eram necessárias pessoas, e eram pessoas que as histórias de ficção científica enviavam.

Ou seja, quem lê hoje as velhas histórias de exploração planetária que abundaram na FC de um certo período não consegue evitar sorrir perante os anacronismos que saltam de cada página. O nosso presente, em tantas coisas inimaginável para os escritores de há cinquenta anos, está repleto de sondas automáticas que exploram os planetas por nós, por uma fração do preço que custaria o envio de gente (quando este é de todo possível, pois embora uma ida a Marte talvez já seja possível com a tecnologia atual, o mesmo não acontece com qualquer viagem que exceda essa distância e duração). O nosso presente que, para escritores como Winterbotham era um futuro ainda razoavelmente longínquo, ultrapassou esse futuro ao mesmo tempo que ficou aquém dele. E é por isso que, embora a FC seja sempre sobre a época em que é escrita, isso se torna especialmente patente quando as ideias que formam a sua camada superficial se tornam obsoletas.

É o caso deste livro.

Mas o livro poderia ter sido bastante interessante se visto sob esse prisma. Mais: Winterbotham consegue ser bastante correto na parte física e tecnológica da viagem que descreve. A propulsão da sua nave é iónica, a mesma que é realmente usada em sondas como a Dawn, que anda a investigar os planetas anões da cintura de asteróides; A nave em que a equipa é enviada para Marte é antecedida por outras naves não tripuladas, com uma carga de água, alimentos e outras coisas necessárias à permanência de gente no planeta, o que é, ainda, o esquema mais promissor para uma futura missão tripulada a Marte; O momento de partida e a duração da viagem dependem da posição relativa de Marte e da Terra, aproveitando as conjunções, tal como acontece com as missões verdadeiras; E etc. Na realidade, poucos são os detalhes de engenharia, da nave e da missão, em que Winterbotham falha, e sempre que isso acontece a falha é compreensível dada a menor informação que havia na época. Se o livro fosse só isso, seria exemplar enquanto FC.

Mesmo o Marte que nos é descrito era bastante plausível no quadro dos conhecimentos da época. O mesmo Marte de que Bradbury nos fala, um Marte seco mas vivo, com canais para aproveitamento da escassa água que se julgava existir à superfície. E uma biologia simples e bizarra, adaptada à escassez de água.

Onde o livro começa a perder o pé é na breve descrição dos marcianos que a expedição vai encontrar. Não que seja inteiramente impossível que uma espécie inteligente só veja através do radar... mas, convenhamos, a ideia é biologicamente tola. A energia que é gasta em sistemas sensoriais ativos, como o radar, é incomparavelmente superior à utilizada em sistemas passivos como os olhos. E a vida só desenvolve sistemas ativos quando os passivos não chegam — quando os animais são noturnos, como os morcegos, ou quando estão limitados pela turvidez da água, como os golfinhos — e quando o metabolismo gera energia suficiente. Não parece ser o caso dos marcianos de Winterbotham, e isso, que para muitos leitores poderá não ter grande importância, para este leitor de formação biológica tem.

Mas mesmo assim o livro poderia ter sido bom. Tem o que é necessário para uma FC de qualidade. A matéria-prima está lá.

Infelizmente, o que Winterbotham faz com essa matéria-prima é uma catástrofe. É que o enredo é em boa medida movido a interações humanas e estas são tão idióticas que estragam tudo. O que faz mover boa parte da trama são... ciúmes. Ciúmes causados por, imaginem, haver uma mulher na expedição. Onde já se viu, uma mulher numa expedição daquelas, não é? Claro que, para evitar problemas, essa mulher se casa com outro membro da expedição imediatamente antes da partida. Claro! Já é suficientemente terrível ser mulher, mas se fosse solteira então... nem se imaginam as desgraças que daí poderiam resultar. Há que casá-la, evidentemente, mesmo que o casamento não passe de fachada. Óbvio. Contudo, o mesmo cuidado, a mesma precaução, não se estendeu à escolha de um comandante que não fosse um sociopata ditatorial e assassino, uma espécie de Capitão Nemo desprovido da cultura e do carisma da personagem de Verne, nem a evitar que miudinhos imaturos e imberbes fossem também enviados para bem longe da Terra. Miudinhos imaturos e imberbes com uma certa tendência para se tornarem violadores.

Com toda esta idiotice humana a servir-lhe de motor, o enredo deste livro é igualmente idiota, e por mais sofisticados que sejam os aspetos científicos e técnicos do romance, não há salvação possível. Num género tão repleto de personagens unidimensionais, de papelão, é invulgar que uma história de FC falhe por ser impossível suspender a descrença relativamente às suas personagens, e no entanto é precisamente isso o que acontece aqui.

Por outro lado, lá está, a FC é sobre o tempo em que é escrita. Parte destas interações sociais, que hoje parecem completamente absurdas, faziam sentido entre os setores conservadores da sociedade americana do início dos anos 60. Há aqui algum retrato desses setores e desse tempo. Mas só algum. E não está, nem de perto nem de longe, suficientemente aprofundado para resgatar o livro. O livro é mau.

Este livro foi comprado em alfarrabista.

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