sábado, 3 de março de 2012

Transignorâncias 4: Alfa, Beta, Et Cetera

E no princípio era o verbo. E do verbo se fez símbolo e do símbolo se fez letra, e desta palavra, e desta fez-se frase, e todos formaram um espelho onde o verbo se reviu. E nunca mais, desde então, andou o verbo sozinho no mundo, passando a trazer sempre consigo o seu reflexo.

Se alguma cultura humana tivesse um mito da criação da linguagem escrita, poderia ser algo assim. Ou se a linguagem escrita tivesse um mito de criação de si própria, o que literariamente seria bem mais interessante.

Mas os mitos de criação são sempre versões idealizadas e simplificadas, mesmo quando ultrapassam a simples invenção e refletem fenómenos reais. Na realidade, as coisas foram bastante mais complicadas do que o mito pode levar a crer.

Nós somos criaturas inerentemente simbólicas. A linguagem (isto é, a linguagem verdadeira, oral) é, em si mesma, uma grande construção simbólica, na qual os sons são símbolos de coisas que os transcendem. Apesar de ser possível que tenham tido origem em representações de sons existentes no ambiente, os sons da linguagem humana há muito se tornaram quase inteiramente abstratos. A exceção são as onomatopeias. Para além delas, a abstração é total. Nada existe na palavra árvore que faça lembrar uma árvore, a não ser o significado que milénios de evolução linguística acabaram por lhe atribuir. Ou seja: a única coisa que liga a palavra ao objeto são umas quantas ligações sinápticas nos cérebros de quem usa essa palavra específica para designar o objeto. Ligações essas que, ainda por cima, não ligam a palavra ao objeto propriamente dito, mas sim à ideia que dele fazemos.

Com a outra grande forma de comunicação humana, a linguagem corporal, as coisas funcionam de forma semelhante, ainda que esta seja mais instintiva e tenha raízes bem mais longínquas na evolução da bicharada que veio desembocar em nós (a língua gestual dos surdos, já agora, sendo como é uma fusão dos mecanismos da linguagem oral com os da corporal, está algures a meio). Mas seja qual for a linguagem de que estivermos a falar, a nossa compreensão do outro passa sempre por uma associação dos símbolos que ele nos envia à ideia que dele fazemos.

Estão a seguir-me? Ainda não foram fazer outra coisa mais interessante? Fico contente. Isto torna-se mais claro a partir daqui, julgo eu.

Pois aconteceu que, a páginas tantas, as criaturas inerentemente simbólicas que somos sentiram a necessidade de fazer registos. Mapas que identificassem onde ficavam certos locais particularmente interessantes para o seu modo de vida, maneiras de contactar os deuses e pedir-lhes sorte na caça, chuva ou aquelas outras coisas necessárias à sobrevivência de grupos de caçadores-recoletores ou dos primeiros agricultores, registos que indicassem quantos objetos do tipo x tinham sido produzidos, apanhados ou transacionados, etc. Nesses primeiros registos havia muita bonecada, mas também já iam aparecendo símbolos mais abstratos, que foram ganhando preponderância, umas vezes por evolução dos bonecos, outras através de invenção pura e simples, até desembocarem nos sistemas de escrita modernos.

Nós, lusófonos, mergulhados como estamos numa cultura cujo sistema de escrita é alfabético, e rodeados e influenciados por outras culturas com sistemas de escrita idênticos ou semelhantes, tendemos a esquecer-nos (ou a nunca termos aprendido) que nem todos os sistemas de escrita o são. Um exemplo: há pouco tempo tive uma discussão sobre o acordo ortográfico no twitter (péssimo sítio para se ter discussões complexas, diga-se de passagem), durante a qual o meu interlocutor me veio com uma pergunta que me deixou abananado pela confusão que revelava quanto à natureza das relações entre língua e escrita na China. Fui levado a regressar a estes temas em boa parte por essa conversa. E também por ter deparado com um graçamoura com demasiado tempo nas mãos, que desperdiça a escrever longos testamentos nos quais revela toda a sua imensa ignorância (nem sequer sabe o que é uma palavra, e não estou a exagerar: o tipo afirma, a pés juntos e sem se rir, que palavras usadas por todo o lado e até dicionarizadas não são palavras. Sim, leram bem. Há quem seja ignorante a este ponto). E por todo o sururu gerado pela nomeação do graçamoura original para o CCB. Mas adiante. Estava eu a dizer que…

A verdade é que há várias formas de se escrever as línguas. Essas formas podem dividir-se, grosso modo, em dois grandes tipos: os sistemas de escrita morfémicos e os sistemas de escrita fonémicos.

Dito assim, na base do palavrão, parece complicado. E é, mas não muito. Eu explico.

Os sistemas de escrita morfémicos são aqueles que se baseiam nos morfemas. Morfemas são uma espécie de átomos do discurso: as mais pequenas partes com significado em que ele se divide. Muitos morfemas são palavras; outros são partes de palavras (os prefixos e sufixos, por exemplo, são morfemas; a palavra prefixo tem dois morfemas: pre e fixo). Ou seja, os morfémicos são sistemas de escrita que refletem não a expressão concreta da língua, mas a sua ideia. Também têm o nome de logográficos e estão, de certa forma, mais próximos de sistemas simbólicos como os sinais de trânsito do que propriamente dos alfabetos. Os caracteres chineses constituem um sistema de escrita logográfico, ainda que não puro. Os hieróglifos egípcios também. Há, ou houve, outros.

A natureza destes sistemas implica duas coisas. Por um lado, que para expressar adequadamente uma língua num desses sistemas são necessários tantos caracteres quantas as unidades de significado que essa língua contém. Ou seja: muitos. Por outro lado, línguas diferentes mas pertencentes à mesma família podem ser escritas da mesma forma, permitindo criar-se, por escrito, um espaço de compreensão mútua que não existe oralmente. Pensem nas línguas latinas, e em especial nas ibéricas, e facilmente compreenderão como a sua lógica interna, as ideias que presidem ao ordenamento das palavras nas frases, e até a constituição das próprias palavras, são praticamente idênticas. Poder-se-ia criar um sistema de escrita logográfico para os filhos do latim que os unisse como se de uma só língua se tratasse… embora isso não os transformasse em tal coisa.

É basicamente o que acontece com o chinês escrito, que unifica sob esta espécie de guarda-chuva logográfico uma série de línguas diferentes mas aparentadas, que coexistem com a língua dominante no país, o mandarim.

Depois, temos os sistemas de escrita fonémicos. Já estão a ver, não estão? O morfema fone é boa pista. Trata-se de sistemas de escrita baseados nos sons produzidos para falar uma determinada língua. Os fonemas. Estes, levando um pouco mais longe a analogia física com que chamei aos morfemas átomos do discurso, são assim como as partículas subatómicas do discurso, os seus protões, neutrões e eletrões, os seus quarks. São sistemas de escrita nos quais os caracteres refletem (embora por vezes de forma algo indireta) os sons que são produzidos para falar uma dada língua. Alfabetos, portanto? Não é assim tão simples.

É que alguns sistemas fonémicos não se baseiam diretamente nos fonemas individuais, mas nas sílabas que eles formam. São os silabários, entre os quais os mais importantes e conhecidos talvez sejam os kana japoneses (hiragana e katakana).

Outros são mistos: existe um carácter por sílaba, mas estes agrupam-se em famílias dominadas pela consoante que domina a sílaba. Exemplificando: se o português fosse escrito com um sistema destes, as palavras sílaba e salada seriam escritas com três caracteres cada, uma vez que cada uma tem três sílabas, mas, em vez de começarem com o mesmo carácter, começariam com caracteres diferentes, mas semelhantes, representando, respetivamente, as sílabas si e sa. Estes sistemas designam-se por alfasilabários, ou abugidas, e os exemplos mais conhecidos deverão ser os alfasilabários brâmicos, com os quais se escrevem muitas das línguas indianas.

Depois ainda há os abjades, sistemas fonémicos nos quais só se escrevem as consoantes, ficando as vogais subentendidas. Os exemplos mais conhecidos deste tipo de sistema são os alfabetos árabe e hebraico, mas há mais, e houve ainda mais em tempos idos.

Por fim, há os alfabetos propriamente ditos, entre os quais este que vocês estão agora a ler é, de longe, o mais comum. Filho do alfabeto grego (tal como o cirílico, o segundo mais usado), espalhado primeiro pela Europa pelo imperialismo romano e depois pelo mundo pelos colonialismos europeus, o alfabeto latino, com as suas muitas variantes, é hoje o mais utilizado sistema de escrita do mundo, quer em número de utilizadores, quer em número de línguas que dele se servem. A nossa é uma delas. Uma das mais importantes, mas só uma.

Mas o facto do nosso sistema de escrita ser o mais comum não quer dizer que não haja outros, alguns regidos por filosofias bem distintas. Os sistemas de escrita não são todos iguais. E, embora certas línguas se adeqúem particularmente bem a certas formas de escrita e outras a outras, é possível a uma língua trocar inteiramente de sistema de escrita sem ser afetada por isso. Há numerosos exemplos espalhados pela história. Nações eslavas (e não só) que adotaram o alfabeto latino depois de serem inicialmente utilizadoras do cirílico; línguas da Ásia ocidental e central que abandonaram o alfabeto árabe em prol do cirílico ou do latino; o dialeto do romeno que conhecemos como moldavo e que, apenas no século XX, mudou primeiro do alfabeto latino para o cirílico e depois regressou ao latino, os vietnamitas, que abandonaram no século XIX os caracteres chineses e adaptaram o alfabeto latino às necessidades da sua língua, etc., etc. Até os nossos antepassados o fizeram, de certa forma. Durante a dominação árabe, a língua predominante nas terras que hoje são Portugal era, não o português, obviamente, mas o moçárabe, também ele filho do latim, uma das línguas ibéricas ocidentais, mais próxima daquela que falamos hoje do que, por exemplo, o catalão. E chegaram-nos textos moçárabes escritos em três alfabetos diferentes: o latino, o hebraico e o árabe.

A mesma língua, três alfabetos.

É bom ter estas coisas presentes quando se discutem detalhes ortográficos, sabem? De que valem uns cc a mais ou a menos quando comparados com sistemas de escrita inteiramente distintos? Que importância podem ter esses cc e pp se comparados com a mudança de um abjade para um alfabeto, ou até de um sistema logográfico para um fonémico? Nenhuma. Rigorosamente nenhuma.

E há mais um detalhe a ter em consideração.

A ideia que preside à criação de alfabetos é precisamente fazer corresponder determinados sons a determinadas letras. A sua lógica é representar a fonética por escrito. Portanto, de uma forma bem concreta, as línguas que se deixam ficar presas à etimologia das palavras estão a subverter a própria lógica do sistema alfabético que usam. Aproximar a grafia à fonética não é simples capricho de linguistas sem nada de mais interessante com que ocupar o tempo, mas respeitar a natureza do sistema de escrita que os nossos longínquos antepassados decidiram adotar para a língua de que a nossa evoluiu.

E nenhuma das línguas que usam alfabetos pode não o fazer para sempre. Todas acabam por ser obrigadas a fazer ajustes, mais tarde ou mais cedo, porque todas mudam com o tempo, todas evoluem, todas se alteram. Se mantiverem a grafia das palavras fixa no tempo, inalterável, chega um ponto em ela passa a refletir mais a ideia das palavras do que os fonemas que as constituem. Chega um ponto, portanto, em que a escrita se transforma, na prática, num conjunto de ideogramas que por acaso calham ter a mesma forma das letras.

Nem o mais radical dos etimófilos defende isto, suponho. Pelo que tenho visto, os que são realmente radicais sonham com uma língua estática e parada no tempo, que não mude. Dizem coisas como “andaram os nossos antepassados milhares de anos a construir a língua portuguesa para nós agora lhe fazermos isto,” afirmações que levam a crer que encaram a língua como coisa feita e acabada, como livro que chegou ao fim. Não percebem que língua que não mude e evolua não é língua, é fóssil. A sombra de uma coisa morta, não a luz de algo vivo.

Portanto a verdadeira questão está na frequência com que se deve fazer a atualização da ortografia, não se esta deve ser feita de todo. Entre os (poucos) que realmente pensaram tudo isto até ao fim, há quem ache que é preferível manter a ortografia estável durante longos períodos e depois fazer grandes reformas espaçadas no tempo, ao passo que outros consideram mais desejável ir-se fazendo com frequência pequenos ajustes. Eu prefiro a segunda alternativa. Acho que a ortografia do português deve ser revista com regularidade, a cada duas, três, quatro décadas, para atualizações e resolução de problemas que tenham surgido ou sido revelados desde a revisão anterior. E mantendo a grafia próxima da fonética, tanto quanto possível dados os condicionalismos a que está sujeita uma língua como a nossa, global, planetária. Respeitando o máximo possível a própria filosofia de base inerente a usar-se um alfabeto para se representar a língua.

E por hoje era isto que vos queria dizer. Foram só duas mil palavras e picos. Não está mal.

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