sexta-feira, 1 de julho de 2011

Lido: A Dama Pé-de-Cabra

A Dama Pé-de-Cabra (bib.), noveleta de Alexandre Herculano, é, talvez, o mais conhecido texto do fantástico oitocentista português — pelo menos de nome. Ambientado nos tempos medievais e de óbvio fundo católico, conta a desastrosa história de um fidalgo que se perde de amores por uma criatura demoníaca, a tal dama pé-de-cabra, e dela tem um filho. Não vou perder tempo com grandes análises; outros já as fizeram mais aprofundadamente e melhor do que eu poderia fazer aqui. Vou só falar do que achei de mais curioso neste texto.

É que se trata, no essencial, de um conto de fantasia. Mas que nada tem a ver com a moderna fantasia comercial que é mais comum encontrar entre nós, baseada em exemplos vindos de fora que por sua vez se baseiam em mitologias nórdicas, germânicas e célticas. É uma fantasia muito portuguesa, na qual o ambiente medieval, de base tão maniqueísta como na fantasia que é mais habitual encontrar-se nas prateleiras das livrarias, está habitado por mouros e cristãos, não tanto por homens e criaturas da floresta. Num país que desse mais valor ao que é seu do que o nosso dá, este conto, e outros da mesma época e índole, seriam muito mais lidos e serviriam de inspiração e mote a muito mais obras. Serviriam de base para a fantasia nacional, de tronco de onde ela brotaria. Mas a realidade, entre nós, é quase sempre outra.

Pois eu acho que num género tão ligado ao passado histórico e às tradições folclóricas dos povos como é o da fantasia (por mais que esse passado e essas tradições sejam depois alterados e adulterados para criar coisas novas) só se poderá falar realmente duma fantasia portuguesa quando textos como A Dama Pé-de-Cabra constituirem pelo menos parte da inspiração. Este conto devia ser leitura obrigatória para todos quantos queiram escrever fantasia em Portugal. Até porque é um conto bem escrito e bem concebido. E, para mim, tem ainda a qualidade de não ser um texto tão maniqueísta como o ambiente e o tema poderiam levar a ser. Há o excesso de catolicismo inevitável num texto deste tipo e desta época, mas ele não é monolítico. Na verdade, parece entrever-se em alguns trechos uma certa compreensão pela criatura diabólica que lhe empresta o título. E confesso que enquanto fui lendo fui imaginando como seria a história contada do ponto de vista dela.

Seria muito diferente, sem dúvida. Provavelmente bem menos maniqueísta. E talvez bem mais interessante, se fosse bem contada.

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